quinta-feira, 17 de setembro de 2009

REFLEXÕES SOBRE A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM NOS REFERENCIAIS CURRICULARES DE LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA DA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO ESTADO DO RS

Cassiano Ricardo Haag
Thaís C. Lopes
Carolina Müller

Neste trabalho, vamos fazer uma breve reflexão sobre a concepção de linguagem que orienta os novos Referenciais Curriculares de Língua Portuguesa e Literatura do Rio Grande do Sul (doravante, Referenciais…), a fim de verificar/discutir em que medida esses Referenciais… aderem a essa concepção de linguagem ao lançar suas sugestões de projetos. Este é um trabalho inicial, entretanto, e ainda não quer ser a palavra final deste grupo sobre o assunto.
Geraldi (1997, p. 40), ao tratar da questão das diferentes concepções de linguagem que subjazem o ensino de língua portuguesa, sugere que a escolha entre uma delas sempre se faz a partir de uma opção política. O autor propõe transferir as preocupações sobre o “como ensinar” língua portuguesa para o “para que ensinar” e, consequentemente, “para que aprender”, defendendo que as respostas a essas duas últimas questões é que poderão dar, de fato, algumas diretrizes importantes para o ensino de língua materna.
O autor segue identificando três diferentes concepções de linguagem que podem estar por trás das práticas escolares: (1) linguagem como expressão do pensamento, (2) linguagem como instrumento de comunicação e (3) linguagem como forma de interação. No primeiro caso, o ensino tradicional de gramática normativa toma o foco no estudo de língua materna. As aulas não passam de “exemplários de descrições previamente feitas”, como aponta Geraldi (1997, p. 46), uma vez que os alunos sequer aprendem a fazer descrições de fatos novos ou a formular hipóteses de descrição, não fazendo mais do que verificar exemplos de descrições feitas anteriormente. A linguagem como instrumento de comunicação é aquela – que apresenta resquícios muito presentes ainda hoje – segundo a qual a língua é um código capaz de transmitir mensagens de um emissor a um receptor. Faraco (2008, p. 186) lembra que, nos anos 70, a disciplina de Língua Portuguesa foi “substituída por uma área que não inocentemente se chamava ‘comunicação e expressão’”. Ao que o autor acrescenta que “em seus fundamentos conceituais, defendia-se uma pseudomodernização dos temas e dos procedimentos de ensino com ênfase na eficácia imediata da comunicação” (idem). Uma terceira concepção, que assume a língua como uma forma de interação, vem tomando corpo no ensino de língua materna, aos poucos, pelo país.
Coroa (2001) também vê três diferentes concepções de linguagem que orientam a prática pedagógica no país e as relaciona com seus respectivos objetos de aprendizagem fundamentais. À concepção de língua como estrutura, a autora destaca a ênfase no estudo das unidades morfológicas. A concepção de língua como comunicação se sustenta na mensagem constituída, basicamente, pela sentença. A concepção de língua como interação ou atuação social define o texto como unidade de análise. A autora chama a atenção de que esta classificação (redutora, destaca ela) não deve ser vista como uma “mera ampliação” das unidades de análise, da sentença para o texto. Para a autora,
mais do que “ampliar” o objeto de trabalho da palavra ou da sentença; isso representa reconhecer que a língua, mais do que uma estrutura, é um trabalho de construção de identidades e que o texto é o ponto de encontro – e dispersão – das diversas habilidades que conduzem a essa construção (COROA, 2001, s/p).
Para Geraldi (1997, p. 42), estudar a língua, na concepção de língua enquanto forma de interação, significa “tentar detectar os compromissos que se criam por meio da fala e as condições que devem ser preenchidas por um falante para falar de certa forma em determinada situação concreta de interação”. Para Coroa (2001, s/p), ao assumir a concepção interacional no ensino de língua materna, “estaremos considerando que, mais do que tomá-la como uma estrutura que serve de veículo comunicativo, tomamo-la como algo que, além de tudo, constrói identidades e faz aderir o sujeito a papéis sociais”. Geraldi (1997, p. 45) sinaliza para o problema de que, numa perspectiva não-interacionista, “a maior parte do tempo e do esforço gasto por professores e alunos durante o processo escolar serve para aprender a metalinguagem de análise da língua, com alguns exercícios, e eu me arriscaria a dizer [diz o autor] ‘exercícios esporádicos’, de língua propriamente ditos”. Faraco (2008, p. 192) relata que a proposta de Wanderley Geraldi de tomar a língua como atividade social e histórica “ficou famosa e se difundiu pelo país”, mas, ao mesmo tempo, para o autor, “um claro fosso entre, de um lado, os que teorizam ou escrevem as diretrizes e, de outro, os docentes da educação básica” (FARACO, 2008, p. 188), cujos motivos, para o autor, devem ser investigados.
Filipouski; Marchi e Simões (2009, p. 2), nos Referenciais…, interpretam as línguas “como formas de articular significados coletivos em códigos, ou seja, em sistemas arbitrários de representação, compartilhados e variáveis, e de lançar mão desses códigos como recursos para produzir e compartilhar sentidos”. Ao que acrescentam: “isso quer dizer que cada língua corresponde a um sistema estruturado, mais estável, mas que acima de tudo se define como trabalho interacional situado, atualizado na prática, historicamente construído e dinâmico”. Esse posicionamento mostra, de um lado, o reconhecimento da necessidade de se aceitar a língua enquanto sistema estruturado de representação e, de outro, o predomínio da concepção interacional na proposta dos Referenciais….
As autoras orientam como competências nucleares para a disciplina de Língua Portuguesa:
- ler textos de gêneros variados, de modo a reagir diante deles, e, com atitude crítica, apropriar-se desses textos para participar da vida social e resolver problemas;
- produzir textos de modo seguro e autoral, não apenas em situações cotidianas da esfera privada, mas também em esferas públicas de atuação social.
(FILIPOUSKI; MARCHI; SIMÕES, 2009, p. 3)
Essas competências se realizam, segundo os Referenciais…, através de quatro práticas: compreensão oral, leitura, escrita e fala. Para as autoras, “isso significa que a unidade em torno da qual se faz todo o trabalho de Língua Portuguesa e Literatura é o texto, ponto de partida e ponto de chegada, em torno do qual todas as tarefas propostas aos alunos se estruturam” (idem, p. 4). Elas acrescentam que “o texto é organizador dos planos de estudos, da progressão curricular, das habilidades a serem desenvolvidas pelos alunos e dos conteúdos a serem trabalhados ao longo da escolaridade”. Essa postura é corroborada por Coroa (2001, s/p), que já destaca que, em sua época, “os novos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) deram feição oficial e nacional a uma abordagem que já vinha sendo amplamente discutida nas pesquisas linguísticas, a que toma o texto como a unidade privilegiada no trabalho pedagógico”. O ensino da leitura, nessa perspectiva, pressupõe “o desenvolvimento de competências para colocar o aluno em interação com o ponto de vista e o conjunto de valores expressos no texto, ou seja, para reagir diante dele e tomar posição” (FILIPOUSKI; MARCHI; SIMÕES, 2009, p. 5). Numa clara referência bakhtiniana, as autoras definem que “ler implica uma atitude responsiva; implica responder ao texto por meio de novas ações, de linguagem ou não” (idem).
As autoras seguem alertando ao professor, sobre sua prática pedagógica, para
opor-se à ideia de que é preciso primeiro trabalhar palavras e frases isoladas, para então poder chegar a textos complexos e de que o trabalho sobre o texto é um trabalho sobre suas estruturas gramaticais, tomadas isoladamente, ou sobre seu vocabulário, retirado do texto e discutido fora de contexto, especialmente para análise e classificação (FILIPOUSKI; MARCHI; SIMÕES, 2009, p. 6).
Como defende Geraldi (1997, p. 45), “uma diferente concepção de linguagem constrói não só uma nova metodologia, mas principalmente um ‘novo conteúdo’ de ensino”. A partir desse postulado, o autor argumenta em favor do ensino do uso da língua em situações concretas de interação, em detrimento do ensino dos conceitos e da metalinguagem dos conteúdos gramaticais:
Parece-me que, para o ensino de primeiro grau [atual Ensino Fundamental], as atividades devem girar em torno do ensino de língua e apenas subsidiariamente se deverá apelar para a metalinguagem, quando a descrição da língua se impõe como meio para alcançar o objetivo final de domínio da língua, em sua variedade padrão (GERALDI, 1997, p. 46).
Conforme Faraco (2008, p. 193), na proposta de Geraldi, “a passagem para um plano metalinguístico […] só se faria progressivamente à medida que os alunos fossem aprimorando o controle sobre a própria produção linguística”. Ao que acrescenta que “o trabalho sistemático com conteúdos propriamente gramaticais não deveria, porém, em nenhum momento, deixar de considerar a sua funcionalidade para o domínio da expressão” (idem).
Para verificar/discutir em que medida essa concepção interacionista da linguagem, efetivamente, determina as sugestões de projetos dos Referenciais…, vamos fazer um recorte apenas do Quadro 5 (Conteúdos da etapa: eixos temáticos, gêneros do discurso e projetos: Língua Portuguesa, Literatura e Línguas Adicionais), referente aos 6º e 7º anos do Ensino Fundamental (antigas 5ª e 6ª séries)[1].
Vejamos o quadro abaixo, que representa uma síntese do primeiro tema sugerido (Identidades):

Analisando o quadro de progressão curricular de número 5, observamos que as atividades propostas correspondem aos princípios apresentados para uma concepção de linguagem interacionista, segundo a qual a linguagem é vista como forma de interação e de práticas sociais, sendo capaz de desenvolver caminhos mais eficazes para a aprendizagem e tornando os sujeitos ativos no seu processo de aprender. Com a prática das atividades propostas, o aluno deixa de ocupar uma posição passiva nos processos de ensino e de aprendizagem, uma vez que toma a língua e seu uso como constituidoras de seu cotidiano. Passa, ainda, a discernir as diversas utilizações da língua, em detrimento de repetições e de métodos tradicionais. Desta forma, a escola promove uma reflexão sobre a língua, pela qual o indivíduo adquire uma independência intelectual, e passa a ter várias compreensões daquilo que lhe é apresentado, atribuindo valores e significados de acordo com sua própria visão de mundo.
Percebemos, ao analisar as atividades citadas como exemplos, um consistente trabalho com diferentes gêneros, que possibilitam aos alunos um rico conhecimento sobre o uso da língua nas modalidades falada e escrita. Através das sugestões apresentadas, vê-se a grande importância dada às atividades de leitura e de produção de textos orais e escritos, explorando-se os diferentes gêneros.
A apresentação das atividades através de temas e subtemas, trazendo uma grande variedade de propostas de projetos, demonstra uma importante articulação entre as teorias dos gêneros, as práticas de letramento, as habilidades e competências a serem desenvolvidas no uso da linguagem e a abordagem dos temas transversais.
Outro aspecto a ser destacado é a grande quantidade de sugestões de atividades que se referem a temáticas como a variedade linguística, o bilinguismo, os usos da linguagem, as diferentes identidades linguísticas, o papel das gírias, etc. Além disso, as sugestões de debates e discussões sobre vários assuntos – que demonstram preocupação com a argumentação já nessas séries – são merecedoras de nota.
Um aspecto que nos trouxe questionamentos foi que, no quadro número 5, não há distinção explícita entre 5ª e 6ª séries. Esta forma de apresentar os conteúdos e as sugestões de atividades passa uma ideia de continuidade, mas não torna explícito o que se espera para cada série. As autoras respondem a isso da seguinte maneira:
É importante notar que a progressão curricular proposta constitui-se num conjunto de possibilidades de trabalho, a partir das quais o plano de estudos pode ser organizado na escola. Os quadros não oferecem uma grade pronta e acabada que deve ser seguida exaustiva e ordenadamente. Faz-se questão, ao contrário, de oferecer até mais possibilidades do que é possível abarcar, temporalmente mesmo, durante um ano escolar, ou até mesmo durante dois anos escolares. Isso é proposital. A idéia é que cada grupo de professores, a partir da compreensão da dinâmica da progressão curricular, realize escolhas, e até mesmo acréscimos, de temas e gêneros do discurso que estruturarão o trabalho ao longo de cada ano escolar, e ao longo dos anos durante os quais o aluno permanecerá na escola. Feitas essas escolhas, e possivelmente acréscimos, a escola terá seu plano de estudos concreto fixado. As unidades didáticas a serem trabalhadas serão, então, modos de concretizar o trabalho em torno dos temas e gêneros escolhidos (FILIPOUSKI; MARCHI; SIMÕES, 2009, p. 71).
Se podemos dizer, com Marcuschi (2008, p. 155), que o gênero textual “refere os textos materializados em situações comunicativas recorrentes”, então, é fundamental que nos dediquemos mais detalhadamente à noção de situação comunicacional que está presente, de um lado, no ensino tradicional, que visa “a formação dos conteúdos em si mesmos (saber por saber) geralmente por métodos transmissivos e de memorização”, como apontam Mendonça e Bunzen (2006, p. 16); de outro, a proposta dos Referenciais… aqui em análise.
Na primeira prática, ao fazer um trabalho escolar, seja ele qual for (pesquisa, produção de texto ou uma avaliação qualquer), o aluno se coloca como (re-)produtor com reduzida força autoral e o professor é seu único destinatário. Produz seu texto com o objetivo exclusivo de obtenção de uma nota, visando à aprovação escolar. É o ano inteiro assim. E, à medida que a convivência com o professor esmorece, esmorece também o empenho do estudante para realizar as tarefas.
Por outro lado, na perspectiva proposta pelos Referenciais…, o professor perde o lugar de destinatário e passa a ser um interlocutor, que media a realização da tarefa. Conforme Doehler (2002, p. 26), “não só as habilidades ou conhecimentos do estudante, mas também as capacidades do professor de ensinar, possivelmente, estão evoluindo num contato didático quando os participantes tentam tratar da situação social”[2]. O destinatário dessas produções dos alunos são a escola, a família, outros estudantes de outras escola, enfim, a sociedade “real”. Os objetivo mudam, conforme a proposta é apresentada e discutida em aula. No entanto, o que é certo, é que a produção final romperá com as paredes da sala de aula e com os muros da escola.


Referências

COROA, Maria Luíza Monteiro Salles. Diferentes concepções de língua na prática pedagógica. In: Revista do GELNE. vol. 3, n. 2, 2001.
DOEHLER, Simona Pekarek. Mediation revisited: the interactive organization os mediation in learning environments. In: Mind, Culture, and Activity. 9 (1), California: University of California, 2002.
FARACO, Carlos Alberto. O ensino de português no Brasil: alguns paradoxos e desafios. In: FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.
FILIPOUSKI, Ana Mariza; MARCHI, Diana; SIMÕES, Luciene Juliano. Referenciais curriculares: Língua Portuguesa e Literatura. Porto Alegre, 2009.
GERALDI, João Wanderley. Concepções de linguagem e ensino de português. In: GERALDI, João Wanderley. (Org.). O texto na sala de aula. 3. ed. 6. impr. São Paulo: Ática, 1997.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.
MENDONÇA, Márcia; BUNZEN, Clécio. Sobre o ensino de língua materna no Ensino Médio e a formação de professores: introdução dialogada. In: BUNZEN, Clécio; MENDONÇA, Márcia. (Org.). Português no Ensino Médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, 2006.
[1] In: Filipouski; Marchi e Simões (2009, pp. 74-87).
[2] Tradução nossa para: “what is possibly evolving in a didatic encounter as the participants attempt to deal with the social situation is not only the learner’s ability or knowlegde but also the expert’s skill in instructing the learner”.

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